segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O legado de Getúlio

O LEGADO DE GETULIO VARGAS
Por Lúcio Costa

In memoriam de Norma, que grávida mostrou a seu filho, no Palácio Piratini da Campanha da Legalidade, que há de caminhar-se com o povo.

Em 24 de agosto 2010, dão-se os cinquenta e seis anos da morte do presidente Getúlio Vargas. Ao longo da história esta será a primeira das muitas tentativas das elites liberais oligárquicas para verem-se livres da herança de Getúlio
Em 1930, Vargas liderou um movimento político e militar que depôs o presidente Washington Luís e deu fim à República Velha. Neste momento, foi rompido o pacto oligárquico que, vindo dos tempos do império escravocrata dos Bragança, submetia as elites estaduais à hegemonia da plutocracia cafeeira paulista avassalada pelas potências imperialistas.
Em todo este edifício social e institucional, em que as eleições se davam a voto descoberto, em que os sindicatos eram fechados e os sindicalistas e militantes populares era presos ou assassinados, não havia lugar para povo de vez que, no dizer do presidente deposto, “a questão social era uma questão de polícia”.
Ao por abaixo a República Velha e ao desencadear profundas transformações no Brasil ao longo de seus mais de quinze anos de governo, o presidente Getúlio Vargas abriu a senda que irá transformar o Brasil de um estado das elites nacionais acolheradas ao imperialismo na possibilidade de uma Nação.
Em 1930 “iniciava-se o período mais prolongado e mais profundo de expansão da economia e de extensão dos direitos sociais que o país conheceu”. Dai, afirmar-se com acerto que Getúlio Vargas fundou o Brasil moderno.
Valendo-se de a crise econômica mundial dos anos trinta e da II Guerra Mundial haver afrouxado as amarras do imperialismo sobre os países latino-americanos, Getúlio realizou um governo em que o Estado foi agente de uma política de ampliação do mercado interno, de substituição de importações e fortalecimento da indústria de base.
Em relação aos trabalhadores, foram reconhecidos os direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, se criaram as condições para a incorporação, ainda que submetidas ao Estado e a direção da burguesia nacional, das grandes massas à vida nacional.
Esta fase foi encerrada em 1945 quando, com o incentivo dos Estados Unidos, Vargas foi deposto do governo.
Em outubro de 1950, Getúlio venceu as eleições presidenciais e retornou ao governo pelo voto popular naquele que será o período mais expressivo de sua atuação.
No governo, Vargas retomou a orientação nacionalista e a política de consolidação da industrialização que o governo autoritário e antipopular do Marechal Dutra havia interrompido.
Em seu curto governo, Getúlio propôs a criação do Serviço Social Rural; apresentou o Plano Nacional do Carvão, a criação do Banco do Nordeste do Brasil; a ampliação do Fundo Rodoviário Nacional, a criação da Petrobras, assinou decreto dispondo sobre o retorno do capital estrangeiro; criou o BNDE; propôs a criação da Eletrobras e anunciou o aumento de 100% do salário mínimo.
A reação do imperialismo e das elites oligárquico-burguesas a ele associadas ao curso nacionalista e popular de Vargas foi forte e raivosa.
A campanha antigetulista da União Democrática Nacional (UDN), sustentada pela grande imprensa e com respaldo da oficialidade direitista, tinha como objetivo romper com a legalidade e dar um golpe de estado que apeasse Getúlio do governo e, do qual resultasse um governo subordinado às políticas norte-americanas sob controle da direita udenista.
O suicídio do presidente Vargas, expressão simbólica da primeira tentativa de eliminar o legado e a influência do nacionalismo varguista, deu origem a uma reação popular em várias partes do país. Jornais golpistas e as sedes da UDN foram atacados pela fúria do povo enlutado.
Em sua Carta Testamento, o presidente Getúlio Vargas identifica quem são e quais as motivações de seus algozes:
A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.
A ofensiva contra Vargas integrava a ação do imperialismo norte-americano e das elites oligárquicoburguesas contra os governos nacionalistas latino-americanos. Em 1954, as tropas americanas invadiram à Guatemala e derrubaram o presidente Jacob Arbenz e; em 1955, na Argentina, os militares após bombardearem a Casa Rosada e o povo reunido na Praça de Maio, derrubaram o presidente Juan Perón.
No Brasil, como o suicídio de Vargas impediu a realização do golpe udenista, foi mantida a legalidade e realizam-se eleições presidenciais em 1956. Destas, resultou a vitória da coligação eleitoral do PSD-PTB e a eleição do presidente Juscelino Kubitschek.
Em apertada síntese, o governo de Juscelino se caracterizou, de um lado, pela garantia das liberdades democráticas e, por outro lado, por uma política que expressa à opção dos setores mais concentrados e dinâmicos da burguesia brasileira por abandonar o projeto de um desenvolvimento nacional autônomo em troca de uma associação subordinada ao imperialismo.
Em janeiro de 1961, com a eleição de Jânio Quadros a UDN chegou ao governo. No entanto, em agosto Jânio renunciou.
Os militares golpistas vetaram a posse do vice-presidente João Goulart (Jango). No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola lançou a “campanha pela legalidade”, defendendo a posse do vice-presidente eleito.
O impasse foi resolvido por acordo imposto pela maioria conservadora do Congresso Nacional, através do qual o vice-presidente assumiu a presidência com poderes reduzidos, passando o Brasil a ter um regime parlamentarista. Desta forma, buscava a UDN que Jango tivesse apenas o cargo de presidente, mas que o governo ficasse em suas mãos.
Em 1962, ocorreram eleições para governador e deputados. O Brasil vinha assistindo desde 1945 um processo de ampliação da participação nas eleições, de um contínuo crescimento eleitoral do PTB getulista e de declínio das forças conservadoras .
O PTB nas eleições de 1962 duplicou sua representação no Congresso passando de 66 para 116 deputados. No dizer de Golbery do Couto e Silva, militar e ideólogo golpista desde sempre, tratava-se da “tendência esquerdista-trabalhista” que a cada pleito alargava grandemente seu eleitorado e avançava seus votos no interior.
Em janeiro de 1963, ocorreu o plebiscito pelo presidencialismo. Nesta oportunidade, o povo brasileiro deu uma esmagadora vitória a Jango aprovando por larga maioria o retorno do presidencialismo.
Em 13 de março de 1964, no comício da Central do Brasil o presidente João Goulart proclama a necessidade de reformar uma “Constituição que legalizava uma estrutura superada, injusta e desumana” e, anuncia a promulgação de importantes medidas tais como, a estatização das refinarias privadas, a imposição de taxação aos imóveis desocupados, a desapropriação de terras para fins de reforma agrária, a reforma política com a extensão do direito de voto aos soldados e marinheiros, a reforma universitária e a realização de plebiscitos para o referendum popular às reformas de bases.
Acuados por uma tendência de ampliação da participação da população nos processos eleitorais combinada a um constante deslocamento a esquerda do eleitorado; derrotados nas urnas nas eleições de 1962 e no plebiscito presidencialista, a UDN e a direita militar, articulados e financiados pelos Estados Unidos, romperam a legalidade e, em 31 de março de 1964, desfecharam o golpe militar que deu origem a mais longa ditadura da história da Republica.
Derrubado Jango, cassados os mandatos de centenas de parlamentares; cerceados os direitos políticos de milhares de brasileiros (as); submetidos à perseguição, à tortura e à morte os militantes da resistência democrática; ocupados os sindicatos pelas forças armadas e entregues a sanha dos interventores; postas na ilegalidade as organizações populares, estudantis e democráticas; ver-se-á erguer o governo com o qual sonhava o imperialismo e o udenismo desde a década de cinquenta.
Nesta quadra da história, as elites liberal-oligárquicas realizaram a segunda tentativa de assassinarem Getúlio e seu legado.
A ditadura militar expressou o abandono pelos setores hegemônicos da burguesia brasileira do projeto nacionalista de substituição de importações e de ampliação do mercado interno de consumo em favor da associação subordinada ao capital forâneo.
Igualmente, o golpe marcou uma ruptura no processo de democratização da sociedade brasileira, sendo as mais de duas décadas da ditadura marcadas pela exclusão das classes trabalhadoras da vida nacional. Nos tempos da ditadura, cabia apenas aos trabalhadores o papel de mão-de-obra barata.
Superada a dispersão provocada pelos anos de dura repressão, a resistência democrática embalada no voto de protesto que desde 1974 foi dado ao MDB assim como, nas passeatas estudantis e nas grandes greves operárias de fins dos anos setenta, ergueu novamente as organizações populares e estudantis destruídas pelos militares (UNE e UBES) bem como, construiu os novos instrumentos de luta (PT, MST e CUT).
No entanto, a tibieza da oposição liberal, decorrente dos laços que a prendem à ordem burguesa, assim como seu temor do povo, fez com que esta em meados dos anos oitenta fizesse um acordo com a ditadura. Daí resultou a eleição do colégio eleitoral que consagrou Tancredo Neves como presidente. Falecido a pouco de iniciar seu mandato, seu vice, José Sarney, assumiu a presidência. Iniciam-se os anos da Nova República.
O cenário internacional, no qual principiava a soprar o vento da contra-reforma neoliberal, combinado com a incapacidade do governo Sarney em debelar a crise econômica que atravessava o País, fez com que, nas eleições presidenciais diretas, as elites oligárquico burguesas, para impedir à vitória de Lula, se lançassem na aventura de Collor de Mello.
Com o impedimento do “caçador de marajás”, seguiu o governicho Itamar e, nas eleições presidenciais seguintes a alternativa oligárquico liberal foi Fernando Henrique Cardoso. Iniciavam-se os anos do dito neoliberalismo.
A destruição do legado da era Vargas era o centro do governo do PSDB/PFL. Tanto assim que, ao iniciar seu governo FHC anunciou: “Viraremos a página do getulismo”.
De fato, nos anos de seus governos, foi levada adiante uma vasta contra-reforma liberal. Realizou-se um programa de privatizações de empresas estratégicas ao desenvolvimento nacional (Companhia Siderúrgica Nacional de Volta Redonda, Companhia Siderúrgica Vale do Rio Doce, RFFSA, companhias telefônicas e de energia elétrica, bancos estaduais, etc.); atacaram-se direitos históricos das classes trabalhadores com milhões de assalariados, criminalizaram-se os movimentos sociais e ampliou-se a miséria e a exclusão do povo trabalhador; manietou-se a política externa do Brasil aos interesses norte-americanos.
Foi à terceira das mortes a que o imperialismo e as oligarquias condenaram Getúlio Vargas.
A indignação com a miséria dos milhões, que tiveram suas vidas sacrificadas em prol do aumento dos lucros do grande capital, combinada com a perda de legitimidade social de FHC e do neoliberalismo face à crise econômica que o Brasil vivia desde 1999, fez com que a esperança termine por vencer o medo. Em 2002, o conluio liberal-conservador foi derrotado, e Lula eleito presidente da República.
Lula recoloca paulatina e seguramente um projeto nacional de desenvolvimento na agenda política. Seu governo colocou fim aos acordos com o FMI, tomou distância das privatizações e das políticas socialmente regressivas e executou, de forma bastante gradual dada à herança da década neoliberal, uma política econômica com distribuição de renda e fortalecimento do mercado interno de consumo.
Desde o ponto de vista da história nacional, o governo do presidente Lula é expressão – como o foram em seu tempo, com todas as suas contradições e impasses, por seu compromisso com um projeto de desenvolvimento nacional socialmente inclusivo os governos de Getúlio Vargas e Jango – do campo nacional e popular.
As forças políticas que ontem levaram o presidente Getúlio Vargas ao suicídio e que derrubaram Jango são as mesmas que ora atacam o “Bolsa Família”, o Pró-Uni, s cotas raciais e sociais nas universidades, os aumentos reais dados ao salário mínimo nacional, a política externa independente e latino-americanista do Brasil.
Como o fizeram ontem, o imperialismo e as elites liberal oligárquicas seguem hoje a buscar manter o País atado à herança e aos usos do Império escravocrata dos Bragança e da Republica Velha dos barões do café e dos coronéis.
Mudaram as siglas e as vozes. Ontem era a UND e Carlos Lacerda. Hoje é o PSDB, FHC e José Serra. Mas os donos da voz seguem os mesmos: as elites oligárquico burguesas nacionais acolheradas do imperialismo.
As profundas feridas que a década neoliberal trouxe à Nação apenas principiam a cicatrizar e, “se muito vale o já mais vale o que será”, o completar da transição para um modelo de desenvolvimento nacional pós-neoliberal .
Nesta senda, o legado do presidente Getúlio Vargas ainda tem um papel a desempenhar na construção da Nação. Trata-se de, como vem fazendo o Governo do Presidente Lula, afirmar o protagonismo do Estado na condução da economia; de qualificar e ampliar os serviços públicos e, de assentar o primado da solidariedade como fio condutor das políticas públicas.
O legado de Getúlio há de ser interpretado, enriquecido e incorporando às experiências e às lições apreendidas na luta contra a ditadura militar e na resistência ao neoliberalismo.
Neste terreno, um dos principais ensinamentos que tiveram as classes trabalhadoras e os socialistas foi à compreensão de que a democracia, o pluralismo, a participação e o controle do Estado pela cidadania são caminhos a trilhar e objetivos a realizar, são valores que somados à igualdade e a fraternidade hão de qualificar o socialismo que construímos.
Transformou-se o Brasil ao longo destes oitenta anos que nos separam da “Revolução de 1930” e dos atos fundacionais do Brasil moderno que realizou o presidente Vargas. Ao completarem-se os cinquenta e seis anos de sua morte, o nacionalismo de orientação popular de Getúlio tem – face à incapacidade da burguesia brasileira em levar adiante um projeto de desenvolvimento nacional – nas classes trabalhadoras e no socialismo democrático, no presidente Lula e na companheira Dilma os herdeiros capazes de preservarem seu legado e persistirem na senda de fazer do Brasil uma Nação democrática e socialmente justa.

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